terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Amanhã seremos Caliban*

(personagem de Une tempête de Aimé Césaire)

No seu último livro, Didier Fassin chama a atenção para o curioso que é que os voluntários que antigamente iam ao auxílio das vítimas de conflitos e opressão, o faziam envolvendo-se na luta política e militar - dá o exemplo de lord Byron, George Orwell e Jean Genet - e os voluntários deste virar de século o fazem em nome da ajuda humanitária. Não é que a situação no terreno tenha mudado radicalmente, escreve Fassin, é antes que a violência e a injustiça têm um significado diferente para nós,mais concretamente, que agora justificamos as nossas acções de uma maneira diferente, na medida em que os governos estão cada vez mais a invocar o argumento humanitário como base para as suas intervenções armadas (tradução minha). 


Esta economia moral humanitária tem levado pessoas bem intencionadas do primeiro mundo a embarcar de forma completamente acrítica e despolitizada em aventuras humanitárias no terceiro. Dessas experiências, fica um ou outro episódio caricato para contar em encontros com amigos gozões, um ou outro episódio de comiseração para partilhar nos rendez-vous do grupo de jovens da paróquia (há que ter um repertório variado para adaptar a cada situação), uma 'experiência internacional' no curriculum vitae, e a já tradicional fotografia de si próprio rodeado de crianças pobres (porém risonhas!) para colocar no perfil do Facebook ou algo que o valha. Naturalizam-se e tomam-se como inevitáveis assimetrias de poder globalizadas, em que as armas das milícias, que abrem caminho às empresas ocidentais exploradoras de recursos naturais chacinando aldeias inteiras, chegam nos mesmo aviões que a ajuda humanitária que sabota economias regiões inteiras. Mais ou menos do mesmo sítio vem o dinheiro que os miúdos ricos transformam nessa perversa forma de capital social que advém do voyerismo da miséria material alheia.


Há pouco tempo, uma jovem universitária contou-me que depois de pagar mais de mil euros a uma dessas agências humanitárias para ir para a Índia, a única tarefa que lhe foi dada foi a de tirar fotografias aos funcionários da tal ONG enquanto estes passeavam em bairros de lata. Esta outra senhora (a do vídeo em baixo) não tem qualquer pudor em afirmar que o seu trabalho no Gana é dar abraços a crianças orfãs.

Pergunto-me quantos desses licenciados precários e desempregados que se estão finalmente a politizar pela Europa fora tiveram em tempos a sua pequena aventura humanitária? Quantos encontrarão nexo entre a sua opressão (a actual e a que poderá estar por vir) e a opressão dos miseráveis actores secundários/objectos decorativos da sua incursão humanitária, e cuja miséria ajudaram a reproduzir? Quantos deles, quando a opressão se tornar insuportável, aceitarão caridade em vez de justiça?




 

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