sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dos discursos com problemas de audição

(Ou esboço livre fora de horas e tico-teco para a recensão que vem aí não tarda - NÃO LEGÍVEL)
Nesse mundo à parte que é a academia - e por academia refiro-me em particular às ciências sociais e humanas, por ser aquela que me é mais próxima, por ser aquela que se debruça sobre questões políticas e sociais com maior profundidade e sistematização - há quem afirme, em jeito de grito, o quão necessário é dar voz aos oprimidos, ou saber se os subalternos podem ou não falar. Sem ter lido o badalado texto de Spivak, concordo, à partida, que a afasia é um tema pertinente na análise das relações de poder e, por isso, considero esta uma meritória bandeira moral (com as aspas que lhe quisermos pôr). Ocorre-me, contudo, que a produção de silêncios e a organização de estruturas discursivas que cimentam esta ou aquela tendência perceptiva sobre o real - afinal, é também disso que se trata - assenta numa  mais complexa tecitura de meios sensoriais e sinais de poder mobilizados nos processos comunicativos. Proponho, por isso, reflectir em digressão tola sobre o outro lado dos processos comunicativos - o receptor, os dominantes, os ricos opressores e maus da fita afins, ousando aqui incluir muitos dos académicos que por aí andam de petulante bota-palavra em riste.

Observação pura, por quem és?

O ênfase dado ao olhar como mecanismo de contacto com o empírico por aí disperso e a imediata confusão entre imagem e real, que esse mesmo ênfase gera, condiciona a forma como encaramos o mundo, não apenas pelos limites de todo e qualquer ângulo de visão por onde o espreitamos, mas também pelo peso teórico que atribuímos ao que vemos - não ao conteúdo do recorte por si, mas à verdade que lhe é atribuída por resultar desse recorte, costumeiro, habitual. Ou seja, o contacto por outros sentidos - de forma simples, o que nos chega através da pele, respectiva pilosidade e extremidades nervosas anexas - é, parece-me, relegado para um plano secundário. Há a acrescentar à preponderância do observável (uso uma noção larga de visão, olhar...) na organização do conhecimento, claro, a memória (quiçá imagética) de experiências anteriores, acumuladas e usadas como contraponto no reconhecimento da suficiência (ou não) do que esse empírico traz à estabilidade do que sabemos, ou julgamos saber, sobre o funcionamento do mundo. A constatação, mais ou menos veloz, do grau de in/suficiência empírica - empírica e por isso localizada, contextual - pode induzir atitudes mais reflexivas ou mais automatizadas, em razão das quais colocamos dúvidas e procuramos outros ângulos de análise, ou assentimos que sim, sabemos o que se passa e tal bastará para assumir esta ou aquela posição fundamentada num juízo derivado de um dado conjunto de certezas. Entre a certeza instintiva e o benefício da dúvida, portanto.

A manipulação de mecanismos (técnicas?) de aproximação ao real será, pois, coeva da manipulação de ruídos e proibições. A abordagem ao empírico será, na prática, construída entre -ismos e -istas vários nomeados num tom pejorativo (culturalista, historicista são apenas exemplos), que indiciam proibições, e formas normalizadas de explanação de argumentos e factos. Resulta, pois, da forma como somos condicionados, ao longo da vida, a lidar com o real, aprendendo convenções (que acabaremos por ajustar e re/produzir) entre familiares, pares, amigos; em ambiente escolar, de trabalho ou outro, onde o poder daqueles com quem nos relacionamos se traduz em sanções e reforços positivos, mais ou menos explícitos (mais ou menos violentos). Os nossos pontos de vista acabam por ser, por isso, relativamente indossociáveis da posição social de onde partimos e dos trajectos que percorremos.


Achaques pós-modernos que traduzem um certo (neo-)positivismo. Quê?

Querendo alcançar uma dimensão que ultrapassa esta mal-enjorcada fenomenologia das impressões (provocadas pelo e através do ambiente), a questão torna-se mais intrincada, como é óbvio, quando não nos cingimos a um real material, palpável, mas a relações interpessoais e a intenções comunicativas que não encontram lugar numa linguagem proposicional e, por isso mesmo, exigem um esforço mais atento ao que de não-verbal é movido no discurso. A linguagem verbal, sobretudo quando agilizada entre a escrita e a literacia, permite elevada sofisticação e largueza idiomática. Desde que usada com frequência e reflexividade. Desde que praticada em múltiplos registos comunicativos e interpelando um leque considerável de interlocutores. Desde que, portanto, a prática leve ao confronto com a insuficiência do que é verbalizado, desafiando o afinar de competências contra declamações obscuras, impenetráveis.


(Continua, eventualmente)