segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

à cata das ilusões perdidas?

Magaíça


A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
á cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.


Noémia de Sousa, in notícias, 07.03.1958, página “Moçambique 58”

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um dia de Pedro Mota Soares: os trabalhadores independentes e os pobrezinhos (e os alunos da António Arroio no dia seguinte)

Ontem, o ministro da Solidariedade e Segurança Social começou o dia bem cedinho a comunicar à rádio TSF o alargamento do prazo para entrega da Declaração do Valor de Actividade. (A notícia da aproximação fim do prazo de entrega da tal declaração tinha-se espalhado pelas redes sociais no dia anterior por acção dos Precários Inflexíveis que reclamavam a falta de informação/divulgação.)
É curioso que, estando alguns membros do CDS discretamente empenhados numa campanha de descredibilização do trabalho jornalístico (exemplos aqui e aqui), um ministro do mesmo partido privilegie a comunicação social para comunicar uma informação importante aos cidadãos, desprezando os canais oficiais do Estado, pois que pelas 11h da manhã - depois de por aqui se ter confirmado o prazo indo à Segurança Social do burgo e telefonando para o gabinete do próprio ministro (just for the fun of it!) -, na página da Segurança Social continuava a constar o prazo antigo.



Depois, o senhor ministro decide anunciar acordos com o terceiro sector no valor de 50 milhões de euros em refeições take away para os pobres que o seu governo vai produzindo e agudizando. Mais uma vez considera-se preferível a imoralidade da esmola, a caridadezinha oferecida de boa vontade, àquilo a que as pessoas têm efectivamente direito.
Por exemplo, a Escola António Arroio, de acordo com os alunos que hoje assustaram o Presidente da República, não está a cumprir uma importante função da acção social escolar prevista na Lei, por não garantir aos seu alunos (os dos escalões A e B e os outros) a utilização de um refeitório.


Agora, será que estes alunos serão transferidos para as refeições-esmola do programa dos 50 milhões?

Eu tenho para mim que seria melhor agarrar em 50 milhões dos impostos que os alunos, os pais dos alunos, os pobrezinhos e todos nós pagamos e começar a aplicá-los em direitos que nos sejam garantidos pela lei e não pela moral caritativa do senhor ministro... que entretanto podia enfiar a caridadezinha num sítio do seu agrado, respeitando os valores cristãos, amém!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

"Ou se paga a propina, ou se compram livros. As duas coisas ao mesmo tempo não dá!"

Fecharam a library.nu

Os mais distraídos talvez não se tenham apercebido da importância desta plataforma no fornecimento de material bibliográfico aos cientistas sociais aqui do burgo. Contudo, prevê-se que na presente conjuntura, em que a política de austeridade tolhe os orçamentos de todas as bibliotecas universitárias, este duro golpe resulte numa crise sem precedentes na produção de teses, artigos, recensões e, sobretudo, fichas de leitura.

Assistiremos a motins provocados por académicos? Será que, sem o usual e abundante fornecimento de pdfs, desviarão os olhos dos ecrãs dos seus portáteis e ai-pades, e levantarão o rabinho para ocuparem as bibliotecas e se organizarem em qualquer coisa mais consequente do que os manifestos medricas que por aí proliferam?

É agora que o cognitariado se revolta, Monsieur Negri?

Amanhã seremos Caliban*

(personagem de Une tempête de Aimé Césaire)

No seu último livro, Didier Fassin chama a atenção para o curioso que é que os voluntários que antigamente iam ao auxílio das vítimas de conflitos e opressão, o faziam envolvendo-se na luta política e militar - dá o exemplo de lord Byron, George Orwell e Jean Genet - e os voluntários deste virar de século o fazem em nome da ajuda humanitária. Não é que a situação no terreno tenha mudado radicalmente, escreve Fassin, é antes que a violência e a injustiça têm um significado diferente para nós,mais concretamente, que agora justificamos as nossas acções de uma maneira diferente, na medida em que os governos estão cada vez mais a invocar o argumento humanitário como base para as suas intervenções armadas (tradução minha). 


Esta economia moral humanitária tem levado pessoas bem intencionadas do primeiro mundo a embarcar de forma completamente acrítica e despolitizada em aventuras humanitárias no terceiro. Dessas experiências, fica um ou outro episódio caricato para contar em encontros com amigos gozões, um ou outro episódio de comiseração para partilhar nos rendez-vous do grupo de jovens da paróquia (há que ter um repertório variado para adaptar a cada situação), uma 'experiência internacional' no curriculum vitae, e a já tradicional fotografia de si próprio rodeado de crianças pobres (porém risonhas!) para colocar no perfil do Facebook ou algo que o valha. Naturalizam-se e tomam-se como inevitáveis assimetrias de poder globalizadas, em que as armas das milícias, que abrem caminho às empresas ocidentais exploradoras de recursos naturais chacinando aldeias inteiras, chegam nos mesmo aviões que a ajuda humanitária que sabota economias regiões inteiras. Mais ou menos do mesmo sítio vem o dinheiro que os miúdos ricos transformam nessa perversa forma de capital social que advém do voyerismo da miséria material alheia.


Há pouco tempo, uma jovem universitária contou-me que depois de pagar mais de mil euros a uma dessas agências humanitárias para ir para a Índia, a única tarefa que lhe foi dada foi a de tirar fotografias aos funcionários da tal ONG enquanto estes passeavam em bairros de lata. Esta outra senhora (a do vídeo em baixo) não tem qualquer pudor em afirmar que o seu trabalho no Gana é dar abraços a crianças orfãs.

Pergunto-me quantos desses licenciados precários e desempregados que se estão finalmente a politizar pela Europa fora tiveram em tempos a sua pequena aventura humanitária? Quantos encontrarão nexo entre a sua opressão (a actual e a que poderá estar por vir) e a opressão dos miseráveis actores secundários/objectos decorativos da sua incursão humanitária, e cuja miséria ajudaram a reproduzir? Quantos deles, quando a opressão se tornar insuportável, aceitarão caridade em vez de justiça?




 

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Um dia desertamos todos

Depois terem sido dispersos da praça de Syntagama com gás lacrimogéneo, enquanto a discussão do novo plano de austeridade decorria no parlamento, os protestantes continuam a gritar pela revolução. A luta, dizem, faz-se entre cidadãos e a polícia a mando do Estado. Há uns dias, num daqueles voxpops a propósito do aumento dos transportes públicos, uma senhora exclamava, em Lisboa, que qualquer dia desistíamos de trabalhar. Não me parece má ideia.

Watch live streaming video from stopcarteltvgr at livestream.com


A independência do salário e de objectos mercantilizados foi uma das bandeiras mais vigorosas da World Industrial Workers. Ontem, na manifestação da CGTP que reuniu, dizem, cerca 300 mil pessoas no Terreiro do Paço, pedia-se trabalho e aumento do salário mínimo contra o plano de ajustamento aplicado a reboque do acordo com a Troika. Há uma curteza de vistas que me preocupa. Bem sei que com o advento da democracia -- a da 1.ª República e a do pós-25 de Abril -- nos convencemos todos de que até fazemos parte do contrato social burilado em forma de Estado. Mas parece-me que limitar a coisa à negociação do equilíbrio nas relações de produção é de um conformismo insuportável nos dias que correm. Em breve -- e preferia estar enganada -- abalará o conforto perceptivo que embala estas loas ao sistema económico vigente. Tomara que o pânico não suplante a vontade de constituir coisas novas.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Oooops...

Sou só eu a achar que o lançamento disto para diante dos olhos da gente não aconteceu por acaso? O vídeo que captura uma conversa "off the record" entre os ministros das finanças de Portugal e da Alemanha aparece mesmo a calhar entre as campanhas propagandistas Portugal não é a Grécia I e Portugal não é a Grécia II levadas a cabo pelo governo.