quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

kriol no subúrbio - primeira entrada

Lá conseguimos acertar calendários, apesar do inesperado, mas bem-vindo, atraso de duas horas.
Foi Cê quem me arranjou o contacto e fez de intermediária e cicerone. Quando cheguei, três ou quatro mulheres conversavam ao sol com o sr. Ésse e outro homem. Todos nascidos na Guiné. Miudagem nas redondezas, aparentados uns e umas, outros e outras não.

(À porta das instalações ao lado do centro lúdico das crianças, parte de um complexo que terá sido obra da câmara municipal, vejo sempre fila de gente adulta à espera, sabe-se lá de quê)

Alguém que se interessa por aprender kriol para ir até à terra de onde partiram desperta uma curiosidade quente: acolhem-me, sabiam que chegaria. Ui, há saudades da manga que faz de almoço. Há a certeza de que é um bom sítio, vou gostar das pessoas, que até esqueço a fruta de cá. Só me têm dito coisas boas. Perguntam por onde andarei e assumem que vou conhecer sobretudo fulas, um engano que procuro esclarecer, dentro do possível (e como é curto este possível). Dizem-me que quando chegar aprendo a língua fácil, que kriol é português mal falado, vem da escravatura. Brincam comigo, bastar-me-ia passar ali uns dias com elas para aprender a falar o português mal falado.


Entramos em casa, para a primeira lição, depois de hesitarmos entre ir ou não ao café (acho que preferia o café para me alargar as vistas sobre o bairro, mas não importa muito). Uma das mulheres, a mais velha, parece-me, afiança a Ésse que não há problema em ir na casa. E que problema poderia haver? Entrar em casa acompanhado apenas de uma jovem mulher? Ou a requisição de sossego num espaço comum?

A família é alargada e a casa, conta-me Ésse mais tarde, é a casa grande ali do sítio, onde as crianças se reúnem depois da escola. Foi para elas que montou aquela pequena biblioteca com os livros da escola que já não precisam, e ali ficaram para consulta. Aponta-me uma pilha de badanas dispostas na horizontal, a preencher o nicho entre a primeira e a segunda prateleira da única estante da sala, aposta à parede onde também se arrumou a mesa. Sentamo-nos aí. Abro o caderno. Dois movimentos ao ritmo de imperativos pronunciados em kriol. É costume o corre-corre, garante: "de dez em dez minutos alguém bate à porta"; mas ninguém bateu, entrariam apenas duas mulheres para a cozinha, meia hora depois, para preparar o jantar, de tons avinagrados que se adivinhavam quando saí.

Ésse chegou há três anos, já ali tinha pessoas com quem ficar. Veio ao abrigo do PADE porque a filha precisa de hemodiálise e na Guiné não era possível seguir com os tratamentos. No outro dia, quando Ésse me deixou pendurada para ir ao médico com outro homem, conheci-a e a mais dois filhos, um menino e uma menina. Formado em 1988, Ésse conta seis anos como professor do secundário, história e geografia. Agora quer voltar, talvez vá ainda este ano e nos encontremos por aquelas terras. Diz que é importante estudar os povos e raças da Guiné, é isso que espera da minha antropologia. Em 1998, era a guerra e os aliados do Nino, senegaleses e CEDEAO, instalaram-se no museu etnográfico, montado em Bissau no tempo colonial. Queimaram os livros que então tinham sido escritos. Ésse valorizava tais estudos e é essa "riqueza da Guiné" que me imaginará a resgatar (tremeu-se-me a espinha, duas, três, quatro vezes). Combinámos que em troca desta iniciação ao kriol o ajudava a aprender a mexer no computador (ajudar a aprender não é o mesmo que ensinar, não). Só sabe de facebook, mas não usa muito, não lhe interessa; quer saber do profissional e o profissional, para um homem que espera recuperar o estatuto de professor quando regressar, é "estatística nominal". Quer fazer cadernetas para controlar o movimento dos alunos e enviar recados aos pais, quando trabalhar numa escola privada em Bissau -- é esse o regresso por que anseia. Irem os raspanetes e recados pela boca das crianças não chega. O computador que tem conseguiu-o mais barato por causa da filha (será um magalhães?) e eles, os outros (mas quem?) tiveram inveja, estranharam a aquisição e não o terão deixado aprender informática onde andava a estudar inglês (onde seria?)

Ésse ver-me-á como mais uma branca a ir para África e, entre o bairro e a Guiné, é-me difícil fugir da evidente tez pálida: "nós", diz, fazemos muita falta para ajudá-los a "eles". Mas pede-me para trabalhar com a comunidade -- com a comunidade e não com "os organismos"? "Trabalhar com a comunidade" soa-me a frase feita, a bandeirola moral. Contra quem? Por conta de quê? Há todo um cenário onde me encaixam, um cenário que me é estranho e onde não sei ainda como me encaixarei. A conversa é corrida, presta-se a sobreposições, num emaranhado tecido por notas de rodapé ciciosas. Organismos, missionários, os padres, o mato, a vila, as secções dentro dos municípios e de comunas. Uma confusão de espaços que se farta, uma ausência de mapas, de roteiros.

Ésse queria que esta primeira aula tivesse sido mais estruturada
(mas eu corro melhor por vias tortas: ai, que ais aí virão)




quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O problema do «preto da Guiné» (e do «escurinho» também)


Cresci no seio de uma família de fortes convicções morais e, de certa forma, políticas, apesar de não haver grandes envolvimentos religiosos ou partidários. A maior parte das coisas que hoje tenho convicção de estarem erradas, sei que estão erradas, em primeiro lugar, porque os meus pais me disseram que estavam erradas, sem explicações dogmáticas, mas também sem grandes discussões filosóficas. Não se fala muito na minha família.
Tenho uma memória em flash que me tem acompanhado ao longo da vida e que ilustra bem esta formação moral familiar. Eu era, obviamente, uma criança, talvez ainda nem andasse na escola, e estava em casa dos meus avós. Alguém toca à campainha e eu vou à porta (vou com curiosidade porque quando a campainha toca, ou é brincadeira ou gente de fora que não sabe que a porta dos fundos está sempre aberta). A pessoa que vai abrir a porta (não me lembro quem, mas é um adulto, porque é consideravelmente mais alto que eu) pergunta «Quem é?» e de lá de fora alguém responde «É o preto da Guiné!». No próximo flash estamos na antiga sala de estar da casa dos meus avós. Pela quantidade de gente, não é um serão qualquer, será provavelmente noite de Natal. Há uma conversa que agita a sala em que se diz que não se deve dizer «É o preto da Guiné!». Não me lembro se a pessoa que disse aquilo está ali a ser repreendida pela frase proferida instantes (ou talvez dias?) antes e se não está. Não me lembro dos argumentos utilizados, o porquê de se estar ali a dizer que não se deve proferir tal frase. Aquilo não se diz! E pronto é só disso que me lembro
Talvez a comoção tenha sido proporcionado pelo facto de os meus avós e pai terem vivido brevemente em Bissau quando esta esteve sob ocupação colonial… mas nunca me lembro de ter alguma vez ouvido algo de marcadamente anti-colonial vindo deles. (Já agora, convém esclarecer que também nunca ouvi nada de pró-colonial.) E tenho a certeza que a comoção também não se deu por aquela frase ser simplesmente “politicamente incorrecta”. Tenho uma mãe com um sentido de humor inglês, bastante irónico e “politicamente incorrecto”, e desde pequena fui ensinada a não repetir na rua as piadas que se faziam em casa porque «as outras pessoas podem não compreender e ficar chateadas».  É que a ironia é uma coisa que funciona apenas se os nossos interlocutores partilharem connosco de uma certa visão crítica do mundo.

Arménio Carlos sabe que os trabalhadores que se encontram como trabalhadores numa manifestação da CGTP sabem, e sabem que ele sabe, que as três instituições da Troika não visitam regularmente o país para dar nada, mas sim para emprestar, tendo em vista lucrar (e muito) como o empréstimo. Por isso, ao comparar os três representantes da Troika aos três reis magos que, de acordo com a lenda, viajaram uma longa distância para oferecer desinteressadamente presentes ao menino Jesus, poderia servir para Arménio Carlos desmascarar os verdadeiros interesses financeiros que estão por detrás destes resgates. O Arménio Carlos sabe que os trabalhadores sabem que ele sabe que a comparação não faz sentido. E por isso é que ela é irónica. Os trabalhadores sabem que o Arménio Carlos não pensa aquilo que está a dizer, mas o seu contrário, porque seria totalmente descabido naquela ocasião perante milhares de trabalhadores, um dirigente sindical dizer aquilo que ele disse literalmente. Certo? Até aqui tudo bem. A ironia funcionaria.

A ironia permite reduzir coisas, situações ou ideias, ao ridículo, e pode resultar em momentos de humor impagáveis. Por isso é tão utilizado pelos políticos nos seus discursos. A mensagem chega rapidamente aos eleitores e ainda se ganha pontos no campo da espirituosidade. Mas reduzir coisas ao ridículo, pela ironia é um exercício de desconstrução para o qual é necessária alguma inteligência. É por isso que o Ricardo Araújo Pereira, antes de ser um tipo com piada, é um tipo inteligente que tem alguma preocupação em conhecer bem as ideias estúpidas, antes de as descontruir. Este preceito – o de conhecer bem as ideias antes de as ironizar com o objectivo de a descontruir - deve ser seguido a rigor, sobretudo se quisermos desconstruir discursos hegemónicos. Caso contrário, corremos o risco de os perpetuar.  

 O neoliberalismo e a racialização são discursos hegemónicos que resultam respectivamente da naturalização da dominação dos trabalhadores pelos patrões e da dominação de pessoas com um fenótipo por pessoas com outro fenótipo. Destas naturalizações resultam, respectivamente, as ideias de que imputar aos trabalhadores a responsabilidade de pagar a dívida pública ou nomear uma pessoa como ‘o escurinho’ se tratam de coisas naturais ou constatação de factos. Ora, nenhuma destas asserções é facto. Elas resultam de processos históricos que ocorrem em paralelo e até se misturam, mas eu escolheria dois momentos distintos para as desconstruir fazendo o uso da ironia. E nunca contribuiria para perpetuar um dos preconceitos para desconstruir o outro, porque eu discordo profundamente dos dois.  

O problema na ironia de Arménio Carlos surge quando ele mete no meio da desconstrução do discurso hegemónico neoliberal a perpetuação do discurso hegemónico da raça. Ficou, de resto, dolorosamente claro, pelos esclarecimentos subsequentes, que Arménio Carlos não quis de todo desconstruir a racialização. Dizer ‘escurinho’ porque a pessoa «é, de facto escurinha», ou dizer ‘preto da Guine’ porque rima com «quem é» não é ironizar. Ironizar implica crítica e nos dois casos não há crítica nenhum. Há, isso sim, pelo não problematizar do que essa linguagem simboliza, o reproduzir de um discurso que tem acompanhado acontecimentos muito graves para muita gente, ao longo já de demasiado tempo.

Para mim, que me identifico com o discurso anti-hegemónico de Arménio Carlos na questão do neoliberalismo, deparar-me a meio da ironia com a afirmação de um outro discurso hegemónico com o qual discordo, fez-me ter uma crise identitária durante uns milésimos de segundo. Eu, que por ser altamente individualista e caprichosa nunca tive tendência à auto-inscrição em grupos, mas que já me ia habituando a permitir que me encaixassem no grupo de pessoas “de esquerda”, percebo que, afinal, essas pessoas que pelos vistos se incluiam nesse grupo da "esquerda": o Arménio Carlos mais as pessoas “de esquerda” que desvalorizaram o que disse Arménio Carlos, e mais as pessoas “de esquerda” que simplesmente ignoraram o que disse Arménio Carlos, afinal não são suficientemente iguais a mim para cabermos no mesmo saco.

A próxima vez que alguém disser que eu sou de esquerda, responderei que prefiro ser chamada de filha da mãe e do pai que a ensinaram a não dizer “é o preto da Guiné”. Entre outras coisas.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

bicicleta no subúrbio - lição 2

Besuntar lábios e mãos antes de sair disparada com a geringonça pelas escadas abaixo para um passeio na baía, ao pôr do sol. E a cara, vá. E pôr as calças por dentro das meias, que ficarão cheias de óleo, pelo que convém usar qualquer coisa rasca (por sorte, chamemos-lhe isso, tenho quase todas as meias pelo fio).

Nota: Há que arranjar uma campainha com urgência. Por acaso deu para me deixar cair na relva -- verde e fofa, graças à chuva -- quando a moça-quase-vítima-de-atropelamento decidiu, no último instante, andar de lado e ocupar a brecha entre ela e o beiral do passeio, pela qual eu pensava conseguir passar (gritar cuidado nem sempre resulta). Talvez fosse melhor arranjar também um capacete.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

bicicleta no subúrbio - lição 1

Subir as escadas com a roda de trás voltada para a frente, segurando também pelo eixo do selim. 
É mais fácil, por uma qualquer razão de ordem física que relacione energia do corpo-motor com massa do corpo-a-carregar, e reduz-se a 100% o risco de entalar dedos e/ou mãos quando o voltante gira descontrolado (a primeira experiência envolveu um ai-ai-ui, deixa-me cá tentar alcançar deste lado com o queixo, que nem queiram saber).

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

un/knowable communities

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Ainda não vos atirei com nenhum livro no novo ano, e este vem a propósito de neo-realistas em polémica com existencialistas. E também a propósito do elitismo de algum cinema francês, como é o caso do recente e magnífico Amour, de Haneke. Porque o Raymond Williams usa o conceito de "knowable communities" ao tratar das "estruturas de sentimento" na literatura britânica. É um conceito muito bom e o livro vale mesmo a pena, apesar de talvez nos faltar alguma familiaridade com as obras referidas. São, aliás, dois óptimos conceitos, o primeiro mais definível que o segundo.

domingo, 9 de dezembro de 2012

pinga que pinga o pingo doce



pois é, Mena: ideologia é coisa que só afecta os outros-ack
em Oxford é que sim senhor, agradeces e sorris
e o benzinho do Sedas, vivó play-back
respirar pra quê? quem não sabe também não vê!
contra a pose do Bo'venturas, esbracejar, esbracejar-ack
dá pra toda uma soirée

sábado, 24 de novembro de 2012

porque a gripe se me aterrou aqui


Do meio da testa ao nariz, e porque o gengibre já deu mais resultado, ficam umas leituras para o fim-de-semana chuvoso. O que as une é a fuga como forma de resistência e a sua problematização por relação a Estados-nações e políticas de mobilidade.
O do Scott promete encantar o mundo (ainda não o li). O outro, do Mezzadra, aproveita para resenhar textos pouco conhecidos do jovem Max Weber, e de outros autores das migrações, tendo talvez um teor mais académico. Isto sem deixar de lado preocupações da militância, o que faz um bem danado à tosse.

Do camandro, ambos os dois, é o que se diz.
E o que é que a gripe tem que ver com isto? Pouco, muito pouco.
Não, febre não tenho. Às vezes apetece atirar livros por aí.

pêdêéfe ao clicar no boneco









 
informações da editora ao clicar no quadradito verde